EDGAR VELAME POETA REACIONÁRIO

O poeta Edgar Velame é natural de Salvador, Bahia; de 05 de maio de 1972.

Aos 15 anos se encantou com a poesia na praça, de Castro Alves, Augusto dos Anjos dentre outros, sua verve poética beira a explosão a candura de versos como as de Fernando Pessoa, é Edgar Velame é a palavra com força bruta, sem meias palavras Edgard Velame é o verdadeiro representante dos poetas da além de todas as praças.

Seus Versos estão sendo propagados em todo o estado da Bahia a fora em suas viagens e seus encontros com estrangeiros interessados em poesia vísceral.

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quarta-feira, 11 de maio de 2011

O gato preto (Edgar Allan Poe)

Uma leitura que indico a vocês é ...


O gato preto
                  (Edgar Allan Poe)
                  Não espero nem solicito o crédito do leitor para a tão 
                  extraordinária e no entanto tão familiar história que vou 
                  contar. Louco seria esperá-lo, num caso cuja evidência até os 
                  meus próprios sentidos se recusam a aceitar. No entanto não 
                  estou louco, e com toda a certeza que não estou a sonhar. Mas 
                  porque posso morrer amanhã, quero aliviar hoje o meu espírito. 
                  O meu fim imediato é mostrar ao mundo, simples, sucintamente e 
                  sem comentários, uma série de meros acontecimentos domésticos. 
                  Nas suas consequências, estes acontecimentos aterrorizaram-me, 
                  torturaram-me, destruíram-me. No entanto, não procurarei 
                  esclarecê-los. O sentimento que em mim despertaram foi quase 
                  exclusivamente o de terror; a muitos outros parecerão menos 
                  terríveis do que extravagantes. Mais tarde, será possível que 
                  se encontre uma inteligência qualquer que reduza a minha 
                  fantasia a uma banalidade. Qualquer inteligência mais serena, 
                  mais lógica e muito menos excitável do que a minha encontrará 
                  tão somente nas circunstâncias que relato com terror uma 
                  seqüência bastante normal de causas e efeitos. 

                  Já na minha infância era notado pela docilidade e humanidade 
                  do meu caráter. Tão nobre era a ternura do meu coração, que eu 
                  acabava por tornar-me num joguete dos meus companheiros. Tinha 
                  uma especial afeição pelos animais e os meus pais permitiam-me 
                  possuir uma grande variedade deles. Com eles passava a maior 
                  parte do meu tempo e nunca me sentia tão feliz como quando 
                  lhes dava de comer e os acariciava. Esta faceta do meu caráter 
                  acentuou-se com os anos, e, quando homem, aí achava uma das 
                  minhas principais fontes de prazer. Quanto àqueles que já 
                  tiveram uma afeição por um cão fiel e sagaz, escusado será 
                  preocupar-me com explicar-lhes a natureza ou a intensidade da 
                  compensação que daí se pode tirar. No amor desinteressado de 
                  um animal, no sacrifício de si mesmo, alguma coisa há que vai 
                  direito ao coração de quem tão freqüentemente pôde comprovar a 
                  amizade mesquinha e a frágil fidelidade do homem. 

                  Casei jovem e tive a felicidade de achar na minha mulher uma 
                  disposição de espírito que não era contrária à minha. Vendo o 
                  meu gosto por animais domésticos, nunca perdia a oportunidade 
                  de me proporcionar alguns exemplares das espécies mais 
                  agradáveis. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um lindo cão, 
                  coelhos, um macaquinho, e um gato. 

                  Este último era um animal notavelmente forte e belo, 
                  completamente preto e excepcionalmente esperto. Quando 
                  falávamos da sua inteligência, a minha mulher, que não era de 
                  todo impermeável à superstição, fazia frequentes alusões à 
                  crença popular que considera todos os gatos pretos como 
                  feiticeiras disfarçadas. Não quero dizer que falasse deste 
                  assunto sempre a sério, e se me refiro agora a isto não é por 
                  qualquer motivo especial, mas apenas porque me veio à ideia. 

                  Plutão, assim se chamava o gato, era o meu amigo predileto e 
                  companheiro de brincadeiras. Só eu lhe dava de comer e 
                  seguia-me por toda a parte, dentro de casa. Era até com 
                  dificuldade que conseguia impedir que me seguisse na rua. 

                  A nossa amizade durou assim vários anos, durante os quais o 
                  meu temperamento e o meu caráter sofreram uma alteração 
                  radical - envergonho-me de o confessar - para pior, devido ao 
                  demônio da intemperança. De dia para dia me tornava mais 
                  taciturno, mais irritável, mais indiferente aos sentimentos 
                  dos outros. Permitia-me usar de uma linguagem brutal com minha 
                  mulher. Com o tempo, cheguei até a usar de violência. 
                  Evidentemente que os meus pobres animaizinhos sentiram a 
                  transformação do meu caráter. Não só os desprezava como os 
                  tratava mal. Por Plutão, porém, ainda nutria uma certa 
                  consideração que me não deixava maltratá-lo. Quanto aos 
                  outros, não tinha escrúpulos em maltratar os coelhos, o macaco 
                  e até o cão, quando por acaso ou por afeição se atravessavam 
                  no meu caminho. 

                  Mas a doença tomava conta de mim - pois que doença se 
                  assemelha à do álcool? - e, por fim, até o próprio Plutão, que 
                  estava a ficar velho e, por conseqüência, um tanto 
                  impertinente, até o próprio Plutão começou a sentir os efeitos 
                  do meu caráter perverso. 

                  Certa noite, ao regressar a casa, completamente embriagado, de 
                  volta de um dos tugúrios da cidade, pareceu-me que o gato 
                  evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, horrorizado com a 
                  violência do meu gesto, feriu-me ligeiramente na mão com os 
                  dentes. Uma fúria dos demônios imediatamente se apossou de 
                  mim. Não me reconhecia. Dir-se-ia que a minha alma original se 
                  evolara do meu corpo num instante e uma ruindade mais do que 
                  demoníaca, saturada de genebra, fazia estremecer cada uma das 
                  fibras do meu corpo. Tirei do bolso do colete um canivete, 
                  abri-o, agarrei o pobre animal pelo pescoço e, 
                  deliberadamente, arranquei-lhe um olho da órbita! Queima-me a 
                  vergonha e todo eu estremeço ao escrever esta abominável 
                  atrocidade. 

                  Quando, com a manhã, me voltou a razão, quando se dissiparam 
                  os vapores da minha noite de estúrdia, experimentei um 
                  sentimento misto de horror e de remorso pelo crime que tinha 
                  cometido. Mas era um sentimento frágil e equívoco e o meu 
                  espírito continuava insensível. Voltei a mergulhar nos 
                  excessos, e depressa afoguei no álcool toda a recordação do 
                  ato. 

                  Entretanto, o gato curou-se lentamente. A órbita agora vazia 
                  apresentava, na verdade, um aspecto horroroso, mas o animal 
                  não aparentava qualquer sofrimento. Vagueava pela casa como de 
                  costume, mas, como seria de esperar, fugia aterrorizado quando 
                  eu me aproximava. Porém, restava-me ainda o suficiente do meu 
                  velho coração para me sentir agravado por esta evidente 
                  antipatia da parte de um animal que outrora tanto gostara de 
                  mim. Em breve este sentimento deu lugar à irritação. E para 
                  minha queda final e irrevogável, o espírito da PERVERSIDADE 
                  fez em seguida a sua aparição. Deste espírito não cura a 
                  filosofia. No entanto, não estou mais certo da existência da 
                  minha alma do que do fato que a perversidade é um dos impulsos 
                  primitivos do coração humano; uma dessas indivisas faculdades 
                  primárias, ou sentimentos, que deu uma direção ao caráter do 
                  homem. Quem se não surpreendeu já uma centena de vezes 
                  cometendo uma ação néscia ou vil, pela única razão de saber 
                  que não devia cometê-la? Não temos nós uma inclinação 
                  perpétua, pese ao melhor do nosso juízo, para violar aquilo 
                  que constitui a Lei, só porque sabemos que o é? E digo que 
                  este espírito de perversidade surgiu para minha perda final. 
                  Foi este anseio insondável da alma por se atormentar, por 
                  oferecer violência à sua própria natureza, por fazer o mal só 
                  pelo mal, que me forçou a continuar e, finalmente, a consumar 
                  a maldade que infligi ao inofensivo animal. Certa manhã, a 
                  sangue-frio, passei-lhe um nó corredio ao pescoço e 
                  enforquei-o no ramo de uma árvore; enforquei-o com as lágrimas 
                  a saltarem-me dos olhos e com o mais amargo remorso no 
                  coração; enforquei-o porque sabia que me tinha tido afeição e 
                  porque sabia que não me tinha dado razão para a torpeza; 
                  enforquei-o porque sabia que ao fazê-lo estava cometendo um 
                  pecado, um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal 
                  a ponto de a colocar, se tal fosse possível, mesmo para além 
                  do alcance da infinita misericórdia do Deus Mais Piedoso e 
                  Mais Severo. 

                  Na noite do próprio dia em que este ato cruel foi perpetrado, 
                  fui acordado do sono aos gritos de "Fogo!". As cortinas da 
                  minha cama estavam em chamas; toda a casa era um braseiro. Foi 
                  com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu 
                  conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. 
                  Todos os meus bens materiais foram destruídos, e daí em diante 
                  mergulhei no desespero. 

                  Sou superior à fraqueza de procurar estabelecer uma seqüência 
                  de causa e efeito entre a atrocidade e o desastre. Limito-me, 
                  porém, a narrar uma cadeia de acontecimentos e não quero 
                  deixar nem um elo sequer incompleto. Nos dias que se sucederam 
                  ao incêndio, visitei as ruínas. As paredes, à excepção de uma, 
                  tinham abatido por completo. Esta excepção era constituída por 
                  um tabique interior, não muito espesso, que estava 
                  sensivelmente no meio da casa, e de encontro ao qual antes 
                  ficava a cabeceira da minha cama. O reboco resistira em grande 
                  parte à ação do fogo, fato que atribuo a ter sido pouco antes 
                  restaurado. 

                  Próximo desta parede juntara-se uma densa multidão e muitas 
                  pessoas pareciam estar a examinar certa zona em particular, 
                  com minúcia e grande atenção. A minha curiosidade foi 
                  despertada pelas palavras "estranho", "singular" e outras 
                  expressões semelhantes. Aproximei-me e vi, como se fora 
                  gravado em baixo revelo, sobre a superfície branca, a figura 
                  de um gato gigantesco. A imagem estava desenhada com uma 
                  precisão realmente espantosa. Em volta do pescoço do animal 
                  estava uma corda. 

                  Mal vi a aparição, pois nem podia pensar que doutra coisa se 
                  tratasse, o meu assombro e o meu terror foram imensos. Por 
                  fim, a reflexão veio em meu auxílio. Lembrei-me que o gato 
                  fora enforcado num jardim junto à casa. Após o alarme de 
                  incêndio, o dito jardim fora imediatamente invadido pela 
                  multidão e por alguém que deve ter cortado a corda do gato e o 
                  deve ter lançado para dentro do meu quarto, por uma janela 
                  aberta. Isto deve ter sido feito, provavelmente, com a 
                  intenção de me acordar. A queda das outras paredes tinha 
                  comprimido a vítima da minha crueldade na substância do reboco 
                  recentemente aplicado e cuja cal, combinada com as chamas e o 
                  amoníaco do cadáver, tinha produzido a imagem tal como eu a 
                  via. 

                  Tendo assim satisfeito prontamente a minha razão - que não 
                  totalmente a minha consciência - sobre o fato extraordinário 
                  atrás descrito, não deixou este, no entanto, de causar 
                  profunda impressão na minha imaginação. Durante meses não 
                  consegui libertar-me do fantasma do gato, e, durante este 
                  período, voltou-me ao espírito uma espécie de sentimento que 
                  parecia remorso, mas que o não era. Cheguei ao ponto de 
                  lamentar a perda do animal e a procurar à minha volta, nos 
                  sórdidos tugúrios que agora freqüentava com assiduidade, um 
                  outro animal da mesma espécie e bastante parecido que 
                  preenchesse o seu lugar. 

                  Uma noite, estava eu sentado meio aturdido num antro mais do 
                  que infamante, a minha atenção foi despertada por um objeto 
                  preto que repousava no topo de um dos enormes toneis de gin ou 
                  de rum que constituíam o principal mobiliário do 
                  compartimento. Havia minutos que olhava para a parte superior 
                  do tonel, e o que agora me causava surpresa era o fato de não 
                  me ter apercebido mais cedo do objeto que estava em cima. 
                  Aproximei-me e toquei-lhe com a mão. Era um gato preto, um 
                  gato enorme, tão grande como Plutão e semelhante a ele em 
                  todos os aspectos menos num. Plutão não tinha sequer um único 
                  pêlo branco no corpo, enquanto este gato tinha uma mancha 
                  branca, grande mas indefinida, que lhe cobria toda a região do 
                  peito. 

                  Quando lhe toquei, imediatamente se levantou e ronronou com 
                  força, roçou-se pela minha mão, e parecia contente por o ter 
                  notado. Era este, pois, o animal que eu procurava. 
                  Imediatamente propus a compra ao dono, mas este nada tinha a 
                  reclamar pelo animal, nada sabia a seu respeito, nunca o tinha 
                  visto até então. 

                  Continuei a acariciá-lo, e quando me preparava para ir para 
                  casa, o animal mostrou-se disposto a acompanhar-me. Permiti 
                  que o fizesse, inclinando-me de vez em quando para o acariciar 
                  enquanto caminhava. Quando chegou a casa, adaptou-se logo e 
                  logo se tornou muito amigo da minha mulher. 

                  Pela minha parte, não tardou em surgir em mim uma antipatia 
                  por ele. Era exatamente o reverso do que eu esperava, mas, não 
                  sei como nem porquê, a sua evidente ternura por mim 
                  desgostava-me e aborrecia-me. Lentamente, a pouco e pouco, 
                  esses sentimentos de desgosto e de aborrecimento 
                  transformaram-se na amargura do ódio. Evitava o animal; um 
                  certo sentimento de vergonha e a lembrança do meu anterior ato 
                  de crueldade impediram-me de o maltratar fisicamente. 
                  Abstive-me, durante semanas, de o maltratar ou exercer sobre 
                  ele qualquer violência, mas, gradualmente, muito gradualmente, 
                  cheguei a nutrir por ele um horror indizível e a fugir 
                  silenciosamente da sua odiosa presença como do bafo da peste. 

                  O que aumentou, sem dúvida, o meu ódio pelo animal foi 
                  descobrir, na manhã do dia seguinte a tê-lo trazido para casa, 
                  que, tal como Plutão, tinha também sido privado de um dos seus 
                  olhos. Esta circunstância, contudo, mais afeição despertou na 
                  minha mulher, que, como já disse, possuía em alto grau aquele 
                  sentimento de humanidade que fora em tempos característica 
                  minha e a fonte de muitos dos meus prazeres mais simples e 
                  mais puros. 

                  Com a minha aversão pelo gato parecia crescer nele a sua 
                  preferência por mim. Seguia os meus passos com uma pertinácia 
                  que seria difícil fazer compreender ao leitor. Sempre que me 
                  sentava, enroscava-se debaixo da minha cadeira ou saltava-me 
                  para os joelhos, cobrindo-me com as suas repugnantes carícias. 
                  Se me levantava para caminhar, metia-se entre os meus pés e 
                  quase me fazia cair ou, fincando as suas garras compridas e 
                  aguçadas no meu roupão, trepava-me até ao peito. Em tais 
                  momentos, embora a minha vontade fosse matá-lo com uma 
                  pancada, era impedido de o fazer, em parte pela lembrança do 
                  meu crime anterior mas, principalmente, devo desde já 
                  confessá-lo, por um verdadeiro medo do animal. 

                  Este medo não era exatamente o receio de um mal físico; no 
                  entanto, é me difícil defini-lo de outro modo. Quase me 
                  envergonhava admitir - sim, mesmo aqui, nesta cela de 
                  malfeitor, eu me envergonho de admitir - que o terror e o 
                  horror que o animal me infundia se viam acrescidos de uma das 
                  fantasias mais perfeitas que é possível conceber. Minha mulher 
                  tinha-me chamado várias vezes a atenção para o aspecto da 
                  mancha de pêlo branco de que já falei, e que era a única 
                  diferença aparente entre o estranho animal e aquele que eu 
                  tinha eliminado. O leitor lembrar-se-á que esta marca, embora 
                  grande, era, originariamente, bastante indefinida, mas, 
                  gradualmente, por fases quase imperceptíveis e que durante 
                  muito tempo a minha razão lutou por rejeitar como fantasiosas, 
                  assumira, finalmente, uma rigorosa nitidez de contornos. Era 
                  agora a imagem de um objecto que me repugna mencionar, e por 
                  isso eu o odiava e temia acima de tudo, e ter-me-ia visto 
                  livre do monstro se o ousasse. Era agora a imagem de uma coisa 
                  abominável e sinistra: a imagem da forca!, oh!, lúgubre e 
                  terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte. 

                  Por essa altura, eu era, na verdade, um miserável maior do que 
                  toda a miséria humana. E um bruto animal cujo semelhante eu 
                  destruíra com desprezo, um bruto animal a comandar-me, a mim, 
                  um homem, feito à imagem do Altíssimo - oh!, desventura 
                  insuportável. Ah, nem de dia nem de noite, nunca, oh!, nunca 
                  mais, conheci a bênção do repouso! Durante o dia o animal não 
                  me deixava um só momento. De noite, a cada hora, quando 
                  despertava dos meus sonhos cheios de indefinível angústia, era 
                  para sentir o bafo quente daquela coisa sobre o meu rosto e o 
                  seu peso enorme, incarnação de um pesadelo que eu não tinha 
                  forças para afastar, pesando-me eternamente sobre o coração. 

                  Sob a pressão de tormentos como estes, os fracos resquícios do 
                  bem que havia em mim desapareceram. Só os pensamentos 
                  pecaminosos me eram familiares - os mais sombrios e os mais 
                  infames dos pensamentos. A tristeza do meu temperamento 
                  aumentou até se tornar em ódio a tudo e à humanidade inteira. 
                  Entretanto, a minha dedicada mulher era a vítima mais usual e 
                  paciente das súbitas, freqüentes e incontroláveis explosões de 
                  fúria a que então me abandonava cegamente. 

                  Um dia acompanhou-me, por qualquer afazer doméstico, à adega 
                  do velho edifício onde a nossa pobreza nos forçava a habitar. 
                  O gato seguiu-me nas escadas íngremes e quase me derrubou, o 
                  que me exasperou até à loucura. Apoderei-me de um machado, e 
                  desvanecendo-se na minha fúria o receio infantil que até então 
                  tinha detido a minha mão, desferi um golpe sobre o animal, que 
                  seria fatal se o tivesse atingido como eu queria. Mas o golpe 
                  foi sustido diabólicamente pela mão da minha mulher. 
                  Enraivecido pela sua intromissão, libertei o braço da sua mão 
                  e enterrei-lhe o machado no crânio. Caiu morta, ali mesmo, sem 
                  um queixume. 

                  Consumado este horrível crime, entreguei-me de seguida, com 
                  toda a determinação, à tarefa de esconder o corpo. Sabia que 
                  não o podia retirar de casa, quer de dia quer de noite, sem 
                  correr o risco de ser visto pelos vizinhos. Muitos projetos se 
                  atropelaram no meu cérebro. Em dado momento, cheguei a pensar 
                  em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los um a um 
                  pelo fogo. Noutro, decidi abrir uma cova no chão da adega. 
                  Depois pensei deitá-lo ao poço do jardim, ou metê-lo numa 
                  caixa como qualquer vulgar mercadoria e arranjar um carregador 
                  para o tirar de casa. Por fim, detive-me sobre o que 
                  considerei a melhor solução de todas. Decidi emparedá-lo na 
                  adega como, segundo as narrativas, faziam os monges da Idade 
                  Média às suas vítimas. 

                  A adega parecia convir perfeitamente aos meus intentos. As 
                  paredes não tinham sido feitas com os acabamentos do costume 
                  e, recentemente, tinham sido todas rebocadas com uma argamassa 
                  grossa que a humidade ambiente não deixara endurecer. Além do 
                  mais, numa das paredes havia uma saliência causada por uma 
                  chaminé falsa ou por uma lareira que tinha sido entaipada para 
                  se assemelhar ao resto da adega. Não duvidei que me seria 
                  fácil retirar os tijolos neste ponto, meter lá dentro o 
                  cadáver e tornar a pôr a taipa como antes, de modo que ninguém 
                  pudesse lobrigar qualquer sinal suspeito. 

                  Não me enganei nos meus cálculos. Com o auxílio de um 
                  pé-de-cabra retirei facilmente os tijolos, e depois de colocar 
                  cuidadosamente o corpo de encontro à parede interior, 
                  mantive-o naquela posição ao mesmo tempo que, com um certo 
                  trabalho, devolvia a toda a estrutura o seu aspecto primitivo. 


                  Usando de toda a precaução, procurei argamassa, areia e fibras 
                  com que preparei um reboco que se não distinguia do antigo e, 
                  com o maior cuidado, cobri os tijolos. Quando terminei, vi com 
                  satisfação que tudo estava certo. A parede não denunciava o 
                  menor sinal de ter sido mexida. Com o maior escrúpulo, apanhei 
                  do chão os resíduos. Olhei em volta, triunfante, e disse para 
                  comigo: "Aqui, pelo menos, não foi infrutífero o meu 
                  trabalho." 

                  A seguir procurei o animal que tinha sido a causa de tanta 
                  desgraça, pois que, finalmente, tinha resolvido matá-lo. Se o 
                  tivesse encontrado naquele momento, era fatal o seu destino. 
                  Mas parecia que o astuto animal se alarmara com a violência da 
                  minha cólera anterior e evitou aparecer-me na frente, dado o 
                  meu estado de espírito. É impossível descrever ou imaginar a 
                  intensa e aprazível sensação de alívio que a ausência do 
                  detestável animal me trouxe. Não me apareceu durante toda a 
                  noite, e deste modo, pelo menos por uma noite, desde que o 
                  trouxera para casa, dormi bem e tranquilamente; sim, dormi, 
                  mesmo com o crime a pesar-me na consciência. 

                  Passaram-se o segundo e terceiro dias e o meu verdugo não 
                  aparecia. Mais uma vez respirei como um homem livre. O 
                  monstro, aterrorizado, tinha abandonado a casa para sempre! 
                  Nunca mais voltaria a vê-lo! 

                  Suprema felicidade a minha! A culpa da ação tenebrosa 
                  inquietava-me pouco. Fizeram-se alguns interrogatórios que 
                  colheram respostas satisfatórias. Fez-se inclusivamente uma 
                  busca, mas, naturalmente, nada se descobriu. Dava como certa a 
                  minha felicidade futura. 

                  No quarto dia após o crime, surgiu inesperadamente em minha 
                  casa um grupo de agentes da Polícia que procederam a uma 
                  rigorosa busca. Eu, porém, confiado na impenetrabilidade do 
                  esconderijo, não sentia qualquer embaraço. Os agentes quiseram 
                  que os acompanhasse na sua busca. Não deixaram o mínimo 
                  escaninho por investigar. Por fim, pela terceira ou quarta 
                  vez, desceram à adega. Nem um músculo me tremeu. O meu coração 
                  batia calmamente como o coração de quem vive na inocência. 
                  Percorri a adega de ponta a ponta. De braços cruzados no 
                  peito, andava descontraído de um lado para o outro. Os agentes 
                  estavam completamente satisfeitos e prontos para partir. O 
                  júbilo do meu coração era demasiado intenso para que o pudesse 
                  suster. Ansiava por dizer pelo menos uma palavra à guisa de 
                  triunfo e para tornar duplamente evidente a sua convição da 
                  minha inocência. 

                  - Senhores - disse por fim, quando iam subir os degraus. - 
                  Estou satisfeito por ter dissipado as vossas suspeitas. Desejo 
                  muita saúde para todos, e um pouco mais de cortesia. A 
                  propósito, esta casa está muito bem construída (e no meu 
                  furioso desejo de dizer qualquer coisa com à-vontade, mal 
                  sabia o que estava a dizer). Direi, até, que é uma casa 
                  excelentemente construída. Estas paredes... vão-se já embora, 
                  meus senhores?... Estas paredes estão solidamente ligadas. - E 
                  neste momento, por uma frenética fanfarronice, bati com força, 
                  com uma bengala que tinha na mão, na parede atrás da qual se 
                  encontrava o cadáver da minha querida esposa. 

                  Ah!, que Deus me livre das garras do arquidemônio! Mal tinha o 
                  eco das minhas pancadas mergulhado no silêncio, quando uma voz 
                  lhes respondeu de dentro do túmulo: um gemido, a princípio 
                  abafado e entrecortado como o choro de urna criança, que 
                  depois se transformou num prolongado grito sonoro e contínuo, 
                  extremamente anormal e inumano. Um bramido, um uivo, misto de 
                  horror e de triunfo, tal como só do inferno poderia vir, 
                  provindo das gargantas conjuntas dos condenados na sua agonia 
                  e dos demônios no gozo da condenação. 

                  Seria insensato falar dos meus pensamentos. Senti-me 
                  desfalecer e encostei-me à parede da frente. Tolhidos pelo 
                  terror e pela surpresa, os agentes que subiam a escada 
                  detiveram-se por instantes. Logo a seguir, doze braços 
                  vigorosos atacavam a parede. Esta caiu de um só golpe. O 
                  cadáver, já bastante decomposto e coberto de pastas de sangue, 
                  apareceu ereto frente aos circunstantes. Sobre a cabeça, com a 
                  vermelha goela dilatada e o olho solitário chispando, estava o 
                  odioso gato cuja astúcia me compelira ao crime e cuja voz 
                  delatora me entregava ao carrasco. Eu tinha emparedado o 
                  monstro no túmulo!





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